sexta-feira, 1 de junho de 2012

O Quati

Conto publicado no livro "O Quati e outros contos".



Era entre nove e dez horas de um dia ensolarado de outubro. Vindo de Natividade para Porto Nacional, o ônibus da  Paraíso, velho, sujo e barulhento, sacolejava pela estrada buraquenta, cuspindo fumaça e levantando uma poeirama dos diabos. Isso  em 1982, num ponto qualquer entre Santa Rosa e Silvanópolis.
            Como sempre, a geringonça vinha apinhada de passageiros, mercadorias e bagagens – sacos, sacolas, malas, bruacas e toda sorte de pacotes, cheios de toda sorte de bugigangas, que não cabiam no bagageiro e, por isso, disputavam o lugar com os passageiros.
            Naquele sufoco, os cheiros que se misturavam ao calor tornavam o ar tão pesado que dava para cortá-lo em fatias. O chulé de mãos dadas com o bodum do sovaco, o cheirinho do xixi dos bebês misturado com o perfume dos pequis (era outubro, lembra-se?), além de outros cheiros difíceis de identificar, transformavam o interior do ônibus num inferno para narinas desacostumadas.
            Por isso, foi um enorme alívio quando o motorista deu  um grito:
- Olha o quati! E,  freando  bruscamente o ônibus,  desceu correndo para o cerrado.
           Foi o que bastou para  o coletivo se esvaziar num piscar de olhos, e homens, mulheres e crianças saírem correndo cerrado adentro, onde o animalzinho, assustado, ziguezagueava atarantado por entre as moitas do agreste em busca de uma árvore salvadora. Encontrou-a e subiu rápido. Mas a árvore era pequena e  frágil, foi sacudida com violência pela horda de vândalos, e o quati, aterrorizado, despencou lá de cima, olhou apavorado seus carrascos em círculo, viu uma brecha e meteu-se nela.
            Não sei por que cargas-d’água meus maus instintos de antigo caçador (ou matador) despertaram num momento e, quando o animalzinho passou ao meu lado, desferi-lhe um bruto pontapé no quarto  traseiro que o fez cair e rolar, não sem antes virar-se para mim com a dentuça arreganhada. Rápido, antes que ele se levantasse, peguei-o pela ponta do rabo e ergui-o de cabeça para baixo. Eu saí caminhando triunfante no meio de todos aqueles caçadores improvisados, que dominaram o bichinho e o imobilizaram com a maior facilidade.
            Ainda hoje lembro o olhar do quati. Não era ódio. Acho que os quatis não odeiam. Era medo, pânico, era a certeza de que seus dias tinham chegado ao fim. Quem disse que os bichos não têm consciência?
          O motorista sorria feliz e lambia os beiços, antegozando o lauto banquete.
         Terminada a “gloriosa” batalha, o ônibus roncou e seguiu caminho. Foi aí que eu percebi uma dorzinha no meio da canela direita. Passei a mão e notei que a calça estava toda encharcada, pegajosa e rasgada. Vi sangue na mão molhada. Puxei a perna da calça para cima,  olhei a canela e lá estava um corte fundo, do tamanho de minha boca  e que começava a doer.
            Então pensei no quati e caí em mim. Senti um remorso do  tamanho do mundo. Argumentei com o motorista, supliquei que parasse o ônibus e soltássemos o bichinho. Tudo em vão. O   resto da viagem foi um tormento – muito mais pelo tardio arrependimento do que pela dor da ferida, que ficava cada vez mais forte.
            Chegando ao destino – Porto Nacional – fui ao Hospital São Vicente de Paula para o curativo. Levei cinco pontos e me levaram um bom dinheiro.
            Ainda hoje, quando recordo o episódio,  sinto um remorso danado e tenho raiva de mim mesmo. Eu era seguramente a pessoa mais culta naquele ônibus. Sabia das coisas.  Devia ter-me valido de minha autoridade e impedido o crime. Não! fui o principal criminoso. Não fosse por mim, homem, rei da criação, animal racional, o animalzinho irracional , o quatizinho,  estaria vivo e feliz, solto pelo cerrado, inofensivo, emprestando à linda natureza de começo das chuvas a graça de seu jeito maroto e descontraído, pondo vida e movimento na verde placidez da paisagem.
            Cinco pontos e uma cicatriz!
            Bem feito!